San Tiago Dantas

O CONTEXTO SOCIAL

Ao iniciar o primeiro de dois ensaios pelos quais renovou de maneira profunda a compreensão crítica do papel de Rui Barbosa no processo de reforma da sociedade brasileira de seu tempo, caracterizado pela “ascensão da classe média”, San Tiago nos legou ensinamentos que bem se apropriam ao esforço de melhor conhecermos o seu pensamento:

“a lição de um grande homem – dizia San Tiago – não atinge à plenitude da eficácia, senão quando, por um ato de raciocínio, o excluímos de nossa subjetividade, para o contemplarmos, na objetividade de sua posição histórica, pensando e agindo como pessoa dramática da sociedade em que viveu. Só então se desprende dele, livre para sempre do perigo de envelhecer, o modelo que nos pôde legar, o sentido universal, que nele pressentíamos, mas não formulávamos”¹.

Leitor assíduo dos grandes sociólogos do conhecimento – Max Weber, Scheler, von Martin, Karl Mannheim -, ele bem sabia que não se tratava da objetividade só possível – e mesmo assim parcialmente – nas chamadas ciências exatas, mas, sim, de esforço sistemático, embora sempre sujeito a imperfeições conscientes ou não, de colocar a personalidade estudada no contexto de sua situação histórica e procurar aferir até que ponto seu pensamento e sua atividade pública refletiram imperativos da sociedade de então e incorporaram, dando-lhes forma e expressão, impulsos vitais do processo social de que participou.

Compreendia, também, que esse esforço crítico reflete “sempre o estado atual de um laborioso e permanente processo de trocas entre ele (i.e. o objeto estudado) e o espírito que o considera”². O inevitável engajamento do observador no debate de ideias da personalidade pública que se propõe apenas a apresentar se torna ainda mais incontornável, quando privilegiado com profícua relação de trabalho, estudo ou amizade, que passaria a inspirar sua própria maneira de encarar o mundo, como aconteceu a tantos que se beneficiaram do contato pessoal com o pensamento de San Tiago Dantas.

Não é fácil tentar esboçar, mesmo que precariamente, as características da época em que San Tiago esteve presente, por suas ideias e sua ação, na vida brasileira. Tratava-se de período que, como todos os momentos de transição, apresentava forças rapidamente cambiantes, aspectos os mais variados, sinais muitas vezes contraditórios. Acresce que a maioria dos dilemas sobre os quais se debruçou, muitos dos impulsos que interpretou, não poucas dúvidas que o atormentaram, continuam vivos na sociedade de hoje, de modo que o contexto social em que se situava, em vários de seus setores mais importantes, ainda coincide com a problemática brasileira de nossos dias.

Fiéis, entretanto, à linha mestra a que nos propusemos desde o início desta exposição, a de procurar utilizar sempre que possível as próprias palavras, o próprio método e os próprios conceitos de San Tiago, para expor-lhe a vida e a obra, sem pretensão a rigor metodológico extremado, extrairemos de uma das últimas conferências que pronunciou, a 20 de março de 1964, a análise da conjuntura social de sua época, que traçou dias antes da ruptura política que pressentiu com tanta clarividência e que tentou evitar pelo esforço de esclarecimento e mediação a que se dedicou com empenho, dentro da linha que lhe era tão própria, de fugir a qualquer radicalização política. Eis como apresentava, então, os traços característicos da “fase tumultuária” de transição para o take off do desenvolvimento econômico, que transformou a “sociedade brasileira (que) até o início da década dos 40 configurava nitidamente o tipo de sociedade tradicional”:

1.°) a implantação acelerada, nos anos de guerra e imediato após a guerra, da industrialização no Centro-Sul do país;
2.°) a falta de investimentos proporcionais, feitos anteriormente ou paralelamente, em educação, saúde, ciência e organização;
3.°) a ascensão política do proletariado urbano e da classe média, ao terminar, com o fim da guerra, o regime instituído em 37, e restabelecer -se o sistema democrático representativo³.

¹San Tiago Dantas, "Rui Barbosa e a Renovação da Sociedade” in Figuras do Direito. Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1962, p. 23.
²San Tiago Dantas, D. Quixote: Um apólogo da alma ocidental. Rio de Janeiro, Livraria Agir Editora, 1948, p. 11
³San Tiago Dantas, "Aula Inaugural proferida a 20 de março de 1964 na Faculdade de Filosofia da Universidade do Brasil" in Palavras de um Professor, Rio de Janeiro, Forense, 1975, p. 188.
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