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D. Quixote – Um apólogo da alma ocidental

Rio de Janeiro | 1948

 
A Augusto Frederico Schmidt


O estudo a que me proponho, nos breves limites desta palestra, e com o qual espero contribuir modestamente para a homenagem que se vem aqui rendendo ao gênio de CERVANTES e à perenidade de sua obra¹, não pertence ao domínio da crítica literária, e ainda menos ao das investigações históricas ou filológicas.

Se me é lícito empregar um dos termos favoritos da filosofia moderna, direi que vou tratar do Quixote como símbolo, isto é, do sentido que o próprio Quixote adquiriu refletindo-se secularmente na consciência ocidental, onde se tornou, a meu ver, uma fábula construtiva, um episódio exemplar, a cuja luz julgamos muitas de nossas próprias experiências, e de que tomamos modelo para muitas de nossas aspirações.

O exame desse tema não dispensa a enunciação de algumas ideias gerais preliminares. Procurarei ser nelas muito breve, explicando apenas o que entendo pelo conhecimento simbólico de uma obra literária, noção que vos é familiar, mas que, como toda noção propedêutica, está sujeita a ser empregada num sentido pessoal, já deformado pelas aplicações que dela pretende tirar o nosso pensamento.

Não é só a obra literária que se mostra suscetível de um conhecimento simbólico. A obra de arte em geral, e os próprios fatos históricos, estão sujeitos a uma dupla ordem de especulação e de conhecimento: em primeiro lugar podem ser vistos e estudados como um fato, que se verificou em condições de tempo e de espaço determinadas. Partindo desse ponto de vista, o conhecimento que obtemos é descritivo, e nele se compreende não só a identificação e caracterização do fato artístico ou histórico, como o estudo de seus antecedentes, das influências externas ou internas que agiram sobre ele e sobre o seu protagonista, ou criador. A segunda ordem de conhecimento a que me refiro é o conhecimento simbólico: um fato histórico, uma obra artística ou literária, ao se projetarem no tempo, adquirem um sentido. Raramente será o que se continha nas intenções do autor, embora possamos admitir que um criador de obra de arte ou um protagonista histórico tenham tido a visão, já direi profética, do que sua ação iria significar na dimensão do tempo. Tal coincidência entre o pensamento do autor e o sentido da obra é, porém, puramente ocasional e irrelevante.


¹Ciclo de conferências realizado em comemoração do 4° centenário de Cervantes, no auditório do Ministério da Educação, sob a presidência do Exmo. Sr. Embaixador da Espanha.
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